Publicado em 2 de outubro de 2023
Dr. Cesar Romão Martins | CRM/SP 97.214
Médico anestesiologista. Título Superior em Anestesiologia pela Sociedade Brasileira de Anestesiologia (SBA).
A história, todos nós, anestesiologistas, conhecemos. As pessoas sempre se feriram, sempre adoeceram e, em muitos casos, necessitaram de tratamento cirúrgico. Durante séculos, a humanidade buscou alguma forma eficaz de promover um estado de anestesia que permitisse aos pacientes sobreviver ao tratamento. Após inúmeras tentativas, na metade do século XIX surge aquela que marcaria o início da era da anestesia moderna: a anestesia inalatória.
Após o óxido nitroso, que, por sua baixa potência, não pode ser usado como anestésico único, surgiram agentes mais potentes, como o éter e o clorofórmio. Muito solúveis, eram agentes difíceis de titular.
Muitos anestésicos inalatórios surgiram na sequência, até a chegada dos agentes inalatórios halogenados: halotano, metoxiflurano, enflurano, isoflurano, sevoflurano e desflurano. Por motivos que não cabem neste texto, o interesse sobre o desflurano não chegou a ganhar muita força no Brasil.
Dentro desse panorama histórico, o melhor anestésico inalatório de que dispomos é o sevoflurano. Sintetizado na década de 1960, foi apenas na década de 1990 que ele entrou para a prática clínica. Esse retardo deveu-se à crença de ser o sevoflurano nefrotóxico, o que pesquisas em animais e em humanos refutaram.
Mas nem só de anestésicos inalatórios se fez a história da anestesia. Nesses 180 anos, vimos o surgimento dos opioides, dos hipnóticos venosos e dos bloqueadores neuromusculares. Em vez de substituir o anestésico inalatório, a introdução desses agentes facilitou o seu uso. A coadministração de opioides, bloqueadores neuromusculares e hipnóticos venosos permitiu que o anestésico inalatório pudesse ser usado em concentrações menores, com foco maior no efeito hipnótico. Esse é o embrião do que chamamos, hoje, de anestesia multimodal.
É verdade que nos últimos 25 anos houve uma tendência a migrar a anestesia para um regime de anestesia venosa total. Mas também é verdade que os anestésicos inalatórios, com destaque para o sevoflurano, seguem como uma importante ferramenta no nosso arsenal anestésico.
Nos tópicos a seguir, abordaremos as razões que mantêm o sevoflurano na nossa prática.
1) INDUÇÃO INALATÓRIA1
O baixo coeficiente de partição sangue-gás e o fato de não irritar as vias aéreas tornam sevoflurano o agente ideal para indução inalatória. Algumas situações em que é possível fazer a indução inalatória com sevoflurano são:
– anestesia pediátrica;
– pacientes cardiopatas;
– acesso venoso difícil
2) FÁCIL TITULAÇÃO1
Segue o mesmo raciocínio da indução. Com baixo coeficiente de partição sangue-gás, o sevoflurano entra em equilíbrio rapidamente quando se deseja aumentar ou diminuir a sua concentração no intraoperatório. A recuperação é igualmente rápida, porque o sevoflurano é eliminado rapidamente após ser descontinuado.
3) NÃO TÓXICO1
No passado, havia o receio de o sevoflurano ser nefrotóxico, tanto em razão dos fluoretos inorgânicos (fruto do seu metabolismo) quanto do composto A (produto de sua degradação na cal sodada ou baritada). No entanto, os estudos em humanos e a grande experiência clínica acumulada asseguram a segurança do sevoflurano para os rins.
Os demais agentes halogenados produzem, em seu metabolismo, o ácido trifluoroacético, que pode ser hepatotóxico. O sevoflurano, ao contrário, produz o metabólito hexafluorisopropanol, que não é hepatotóxico. Portanto, o sevoflurano é o anestésico inalatório com melhor perfil de segurança.
4) PROTEÇÃO DE ÓRGÃOS
Dentro do capítulo de “efeitos tardios da anestesia”, desde os anos 2000 acumulam-se evidências de que o uso de anestésicos halogenados pode ter papel cardioprotetor,2 neuroprotetor,3 hepatoportetor,4 entre outros. Os mecanismos não estão totalmente elucidados.
5) ANESTESIA MULTIMODAL5
O princípio da anestesia multimodal é associar diferentes fármacos que se somem em seus efeitos desejados e ainda sejam individualmente administrados em pequenas quantidades, a fim de produzir menos efeitos colaterais. O sevoflurano, mesmo em doses baixas, potencializa o efeito do propofol, do midazolam, da dexmedetomidina, da cetamina, do sulfato de magnésio, dos opioides e dos bloqueadores neuromusculares. Além disso, como veremos nos itens seguintes, ajuda a prevenir a ocorrência de recall.
6) FACILIDADE PARA VER SEU EFEITO NO ESPECTROGRAMA6
Cada vez mais, somos estimulados a guiar a hipnose pelo espectrograma, que é uma representação gráfica do eletroencefalograma bruto, no lugar de usarmos o valor numérico do BIS ou o PSI. Cada fármaco tem a própria assinatura no espectrograma, decorrente dos diferentes mecanismos pelos quais cada fármaco gera o estado de inconsciência. Na Figura 1 podemos observar as assinaturas do sevoflurano nos espectrogramas. A concentração inspirada está representada nos traços azuis na parte superior de cada painel. As setas verdes representam bolus de propofol. (A) Em CAM sub-mínima (minutos 40 a 60), o espectrograma do sevoflurano assemelha-se ao do propofol (slow-alpha oscilations). Conforme as concentrações de sevoflrano aumentam (minutos 100 a 120), surgem as oscilações teta (5 a 7 Hz). As oscilações teta desaparecem quando a concentração do sevoflurano é diminuída. (B) O espectrograma do sevoflurano mostra atividade constante alfa, slow, delta e teta à concentração estável de 3%. A atividade teta pode ser vista como a linha vermelha na faixa dos 5 Hz que preenche o espaço entre as linhas vermelhas que representam a atividade slow (< 1 Hz) e alfa (próximo de 10 Hz).
Figura 1. Espectrograma do sevoflurano em diferentes concentrações. Explicação no corpo do texto.
Adaptada de: Purdon PL, et al., 2015.6
7) MAIOR SEGURANÇA CONTRA RECALL7,8
Anestesia venosa total, principalmente quando associada a bloqueadores neuromusculares, é um fator de risco para memória do intraoperatório (recall). A introdução da monitorização da consciência teve como objetivo minimizar o risco de recall. No entanto, diversos estudos corroboram que a monitoração da fração expirada do sevoflurano (a ser mantida entre 0,7 e 1,3 CAM) é uma alternativa aos monitores de consciência e previne com a mesma acurácia a incidência de recall.
8) SEDAÇÃO EM UTI9
Ainda pouco usada no Brasil, trata-se de uma técnica que tem ganhado atenção em vários países. Menor taquifilaxia, facilidade para titular a dose e interromper a sedação para avaliação neurológica estão entre as vantagens. Seus efeitos cardio, neuro e pneumoprotetores seguem em estudo. A limitação está na necessidade de técnicas de administração que minimizem a poluição ambiental.
9) POLUIÇÃO AMBIENTAL10
Já que a poluição foi citada no item anterior, aqui valem algumas palavras. Os anestésicos inalatórios são gases de efeito estufa. Perto das emissões dos demais gases de efeito estufa, a responsabilidade dos anestésicos inalatórios é mínima. Mais do que nos incentivar a não os usar, saber desse fato nos estimula a buscar aprimoramento nas técnicas de administração a fim de minimizar desperdício do anestésico. Os anestésicos venosos, embora não poluam o ar, poluem o solo a partir de seu descarte inadequado e de sua eliminação in natura ou na forma de metabólitos.
Por todos esses motivos, podemos responder à pergunta que abre este texto e afirmar que o sevoflurano não é, de forma alguma, um anestésico anacrônico.
Referências:Referências
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